domingo, 21 de novembro de 2010

Pelotas, do salgado ao doce






Nas cozinhas, mesas e vitrines da cidade gaúcha sobrevive a doçaria do tempo das charqueadas.


Casarão na cidade gaúcha que foi grande centro produtor de charqueDois séculos atrás, era no mês de outubro que se formavam as primeiras tropas de gado com destino a Pelotas, o maior centro sulino de produção de charque (carne salgada e seca ao sol), cuja safra se prolongava de novembro a maio. Das bandas do Rio Uruguai, um grupo levava até 45 dias para chegar à Tablada pelotense, onde os bois eram vendidos à vista aos charqueadores.

Donos de escravos, barcos e contatos externos, os charqueadores mais fortes tinham “plata” suficiente para comprar e abater até 70 mil bois por temporada. Relatos de viajantes estrangeiros descreviam o contraste: enquanto as charqueadas exalavam um fedor pegajoso do verão ao inverno, o centro da cidade dava-se ares e costumes europeus do outono à primavera. Em banquetes e saraus, a elite pelotense degustava os doces cuja fabricação, décadas depois, constituiria a maior tradição local. Prestes a completar 200 anos (em 2012), a cidade prepara uma festa para contar como migrou da salga de carne para a cultura do doce.

O extinto polo salgado sobrevive em casarões restaurados e chaminés perdidas às margens dos rios vizinhos, onde chegaram a operar simultaneamente 37 charqueadas. A primeira foi fundada em 1780 por um empresário cearense – um retirante endinheirado. As últimas se sustentaram até o início do século XX. Fecharam aos poucos, abatidas pelo fim da escravidão (1888) e pela construção de uma ferrovia (1884), que atraiu novas charqueadas (e, depois, frigoríficos) para Bagé, centro geográfico do Pampa pecuarista. Ex-moradias dos charqueadores, os casarões remanescentes servem hoje como escritórios rurais, residências ou hotéis engalados na Rota das Charqueadas.


A rota das Charqueadas é composta de antigos casarões, como o da Praça Coronel Pedro Osorio, no centro da cidadeArquitetos, historiadores e turismólogos que se debruçaram sobre o assunto concluíram que o polo doce tem raízes tão antigas quanto o salgado, posto que remonta à tradição da indústria artesanal da confeitaria portuguesa. Um estudo antropológico feito pela Universidade Federal de Pelotas concluiu que fazer doces finos ou de bandeja era uma das ocupações da mão de obra doméstica na entressafra do charque, de maio a novembro. Havia fartura de açúcar – trocado por charque com o nordeste brasileiro. A doçaria pelotense foi enriquecida, na segunda metade do século XIX, pelos sítios de colonos alemães, que abasteciam a cidade com ovos e frutas como pêssego, figo e marmelo. Já nos anos 1950, se explorava o slogan segundo o qual Pelotas fabricava “os doces que mais viajam no Brasil”. Prosperou, na época, a indústria de conservas.

A tradição doceira está preservada pela realização, no inverno, da Fenadoce, que nasceu em 1986 em bancas emprestadas pela Feira do Livro. No site da feira, em que são apresentadas receitas dos doces mais famosos, são diferenciados os “finos” dos “coloniais”. Estes seriam os cristalizados, as geleias e tudo aquilo vindo de hortas, pomares e roças. Os finos seriam fruto do refinamento de uma arte culinária voltada para eventos sociais. No começo, eram pequenos – os bocados, com sabor específico: ovos, leite, coco, abóbora, nozes, etc.

Com a passagem do tempo e a incorporação do leite condensado, os doces se tornaram grandes para garantir a sobremesa, sustentar lanches de rua ou acompanhar o chá em confeitarias. Nada muito diferente do que acontece em quaisquer cidades de médio e grande porte, onde a doçaria tradicional (dos tachos de cobre e fogões a lenha) vem dando lugar à indústria de doces feitos em panelões a vapor. A diferença é que, em Pelotas, o hábito, além de tradição, virou negócio capaz de revitalizar pontos comerciais apagados.




Peão e cavalo na atual Estância da Graça, local que, no passado, recebia tropas com milhares de bois para compra e abateNo último inverno, foi aberta na esquina mais movimentada da praça central da cidade o segundo café-confeitaria da doceira Márcia Aquino. Profissional há 17 anos, Márcia confirma que “fazer doce é um bom negócio, mas dá muito trabalho”. Com mais de 40 pessoas empregadas em suas duas lojas, ela faz parte de uma geração de empresárias que, há dois anos, apoiada pelo Sebrae, fundou a Associação dos Doces de Pelotas.

Apenas dez doceiras profissionais fazem parte da organização, cujo objetivo inicial é obter do Instituto Nacional de Propriedade Industrial um selo de procedência geográfica. Meta difícil, pois não apenas em Pelotas se fazem os chamados doces pelotenses, cuja origem portuguesa sofreu outras influências. Também não se sabe o alcance socioeconômico da doçaria.

No levantamento feito de 2006 a 2008 para subsidiar o registro oficial da doçaria pelotense como patrimônio cultural brasileiro, a Universidade Federal de Pelotas absteve-se de estimar quantas pessoas se sustentam fazendo doces (e salgadinhos) sob encomenda. Mais do que em qualquer cidade brasileira de raízes portuguesas, fazer doce em Pelotas tornou-se atividade econômica para milhares de pessoas, que herdaram o ofício de mães, tias e avós. A maioria, formada de mulheres que trabalham em casa, não faz questão de notoriedade – até prefere operar sem alarde, à margem do mundo oficial.




Alguns dos doces vendidos no local


DOCE

Abelhas e formigas
Bico ou profissão, a humildade da doçaria pelotense está estampada no quiosque da Cooperativa dos Doceiros de Pelotas, fundada há 30 anos por alunas de um curso de culinária do Sesc. Quando começou, com o auxílio do último proprietário da antiga Confeitaria Nogueira, fechada no início dos anos 1980, o grupo chegou a reunir 117 sócios, que ajudaram a fundar a Fenadoce, em 1986.

Reduzida a 30 sócios, a cooperativa espera que a festa dos 200 anos da cidade a ajude a conquistar um lugar melhor para operar – talvez no centenário Mercado Público (em reforma). Há anos instalada no calçadão, em ponto arruinado por uma invasão de camelôs, a lojinha tem um pouco de tudo, como a passa de pêssego, “nosso carro-chefe”, diz a presidente Ligia Henriques. Segundo ela, apenas três doçarias da cidade fazem a guloseima, vendida por R$ 9 a caixa de 400 gramas.




Um dos dois cafés-confeitarias da doceira Márcia Aquino, na praça central de Pelotas, negócio que já emprega 40 pessoas

SALGADO

Do charque ao arroz
O último charqueador pelotense foi Pedro Osório (1854-1931), cujo nome batiza a praça central de Pelotas. Quando percebeu que o charque seria substituído pelas carnes congeladas nos frigoríficos de padrão americano, no início do século XX, ele buscou outros negócios. Foi pioneiro no cultivo do arroz. A planície costeira era propícia às lavouras inundadas. Hoje, o arroz ocupa 1 milhão de hectares por ano no estado. Pedro Osório também foi pioneiro no plantio de eucalipto para atender à necessidade de lenha para seus barcos a vapor, engenhos de arroz e charqueadas. Quando morreu, implantava uma criação de frangos na metade norte do estado. Para ele, grande capitalista, o doce era um mero insumo de festas.
Globo Rural Geraldo Hasse | Fotos: Marcelo Curia

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