domingo, 21 de novembro de 2010

Estrada de ferro e de esquecimento



Jovens pesquisadores mapeiam paisagem ferroviária em Curitiba e apontam caminhos para a preservação da história fabril. Material deve pautar novas políticas de patrimônio

Publicado em 21/11/2010 | José Carlos Fernandes
Fale conoscoRSSImprimirEnviar por emailReceba notícias pelo celularReceba boletinsAumentar letraDiminuir letraO cartorário João Lazzarotto, 78 anos, nasceu e cresceu à beira da linha do trem, no bairro do Cajuru. Seu pai era ferroviário. E seu irmão – o célebre ilustrador Poty Lazzarotto –, fez dos trilhos e dos vagões presença constante nas obras que criou. Com tanta intimidade, Joãozinho, como costuma ser chamado, volta e meia se refere à estrada como a “ferrovia das galinhas”.

Não deve ser o único a soltar essa anedota. Em Curitiba e algumas cidades da região metropolitana, a linha do trem passava nos quintais, chacoalhava os varais e marcou o imaginário da petizada tanto quanto as Balas Zequinha. Para reforçar, não raro alguém da família trabalhava na Rede Ferroviária Federal – a RFFSA – o que fazia dos vagões e maquinistas um assunto para os cafés com cuque.




Edifício Teixeira Soares no Centro de Curitiba: pequeno trecho protegido
Ói o trem...
Confira a principais discussões que rondam o debate sobre a preservação da paisagem ferroviária da capital.

1 Tombamento: a paisagem ferroviária de Curitiba não está tombada pela União ou pelo Estado. São exceções a Estação Ferroviária e a Ponte Preta, na Rua João Negrão. No entorno, está tombada a Serra do Mar – o que não inclui as estações. Mas desde 2007, por decreto federal, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, é responsável pelo mapeamento e gestão dos imóveis e bens da RFFSA.

2 Mapeamento: o Iphan está fazendo um inventário dos bens da Rede em todo o país. Ainda não há informações conclusivas sobre o número de estações, casas, prédios administrativos e acervos, a exemplo do que está no Edifício Teixeira Soares, da Rua João Negrão, futuro câmpus da UFPR. O volume de bens é imenso e demanda pesquisas como a realizada pelo grupo de Dayana Zdebsky.

3 Preservação: O superintendente do Iphan no Paraná, José La Pastina, acredita que o atual modelo de gestão da paisagem ferroviária tende a dar certo. Embora sem os rigores do tombamento convencional – necessário apenas em alguns casos –, o instituto sensibiliza municípios e empresas. A ALL, por exemplo, tem compromissos firmados de preservar. E graças às parcerias, estações como a Lavrinha, na Lapa, foram restauradas e ganharam novos usos.

4 Retirada dos trilhos: Assunto delicado: ninguém duvida que isso vá acontecer, a exemplo do realizado no ramal Portão. O risco é que surjam novas Ferrovilas – nome dado à ocupação irregular instalada na linha de trem que passava por dentro das madeireiras da região. La Pastina acredita que mesmo sem os trilhos, o caminho por onde passava o trem deva ser mantido como ciclovia, via alternativa ou mesmo para trânsito de pequenos trens. “É um caminho da cidade. Deve ganhar nova utilidade, mas sem descaracterização violenta.”

5 Linha Paranaguá: é tombada pelo Estado – a Serra do Mar, pontes e trilhos, não as casas, que dependem das parcerias. La Pastina informa que o Iphan não abrirá mão de o trem partir da Rodoferroviária, pois entende que esse ramal não interfere negativamente. Outras cidades caíram na esparrela de anular a memória do trem. Nenhuma delas fez a coisa certa.
Os tempos, claro, são outros. Da RFFSA resta um emblema apagado nas fachadas dos prédios da Rua João Negrão. Para os mais moços é, com sorte, o tema de uma música engraçada de Kleiton e Kledir. Os trens ainda estão por aí, mas cruzam a cidade transportando carga, trepidando muros, fazendo apitaços e levando os motoristas à loucura. Nas janelinhas, acenando, não há moçoilas de chapéu. Parte da poesia do trem, diga-se, ficou na saudade.

Por essas e outras, tem-se como favas contadas a retirada dos trilhos do ramal que leva a Rio Branco do Sul, o mais problemático. Mas corre-se o risco de que o sumiço desse endereço do passado só sirva para dar lugar à desmedida coleção de automóveis da cidade. Poucas galinhas fujonas dos Lazzarotto sobreviveriam a essa mudança.

Os prédios de administração ferroviária, vilinhas de operários, pontes e estações da Rede – tal como os trilhos – gozam do mesmo desprestígio. De modo que depois dos prédios das indústrias Matarazzo e da fábrica do Matte Leão – para citar dois conjuntos da paisagem fabril da região prestes a virar fumaça – não é alarmismo afirmar que a paisagem ferroviária se aproxima do fim.

A situação tira o sono de especialistas e militantes do patrimônio. Muitos, vale lembrar, fizeram da questão uma espécie de culto secreto, uma religião das catacumbas, na qual conspiram para salvar o que resta da cultura da estrada de ferro. Nesse momento, alguém deve estar fotografando uma estação na Serra do Mar ou um chalé da Vila Oficinas, apegado, talvez, à memória dos antepassados ou à simpatia que os trens teimam em despertar.

Foi mais ou menos o que aconteceu a um grupo de seis jovens pesquisadores que no último ano se dedicaram, literalmente, a andar pelas linhas férreas da capital. Eles venceram um edital da Fundação Cultural de Curitiba, no valor de R$ 60 mil, para estudar a paisagem ferroviária. Produziram um livro e um site – a serem lançados – e, como se dizia, “descobriram a América”.

“Você conhece um trecho de rua com casas de operários, na Engenheiros Rebouças, altura do Estádio Durival de Brito?”, pergunta o fotógrafo Leco de Souza, um dos participantes, repetindo uma conversa recorrente entre os participantes do projeto “Pelos Trilhos”. Eles são pura novidade. As sobras da RFFSA não eram o maior interesse do grupo, mas, via de regra, todos estavam ocupados de questões urbanas. Agora se rendem à “era paralelepípeda” e se tornam referência no assunto.

Além de Leco, participaram do levantamento as antropólogas Dayana Zdebsky de Cordova – coordenadora da pesquisa – e Aline Iubel; os arquitetos Gabriel Gallarza e Maria Baptista, e o historiador Fabiano Stoiev. A média de idade da trupe é 27 anos. À primeira vista, mapear um cenário antigo da cidade pode até parecer uma aventura de mocidade. Mas o fato é que trabalhos como esses – financiados e, portanto, capazes de atrair profissionais gabaritados – vêm sendo apontados como uma saída para o túnel em que se meteu o patrimônio.

A explicação é simples. As políticas de preservação no Brasil são frutos do nacionalismo dos anos 30 e carregam tantas contradições quanto a época que as viu nascer. Não é difícil imaginar que, apesar de mentes brilhantes como a de Mário de Andrade terem contribuído para a questão, ela se desenvolveu de maneira torta: consegue ser paternalista e mal subsidiada ao mesmo tempo. “Acostumou-se a achar que só o extraordinário deveria ser preservado”, observa a pesquisadora da USP Manoela Rossinetti Rufinoni, especializada na paisagem fabril de São Paulo.

Além de só contemplar casarões e palacetes, essas políticas se pautaram por ter passos bêbados. Quando os órgãos oficiais se encantavam com um período histórico, fatalmente ele já se encontrava a caminho dos infernos, sobrando uns poucos endereços para cuidar. É o destino, por exemplo, da arquitetura moderna de Curitiba, vítima da fragilíssima política de preservação da prefeitura.

Editais, como o vencido por Dayana e seus parceiros, podem reverter essa tendência. Com documentação sólida e convincente, é mais fácil ultrapassar a velocidade com que se destrói o patrimônio e convencer os gestores a andarem mais rápido. Houvesse um estudo sobre a arquitetura fabril da erva-mate, quem sabe, Curitiba teria encontrado uma solução menos bárbara para suas fábricas do Rebouças.

A experiência da dupla de arquitetos do projeto aponta para a eficácia dos mapeamentos. Maria Baptista e Gabriel Gallarza identificaran nada menos do que 295 pontos da cidade em que a paisagem ferroviária dá o ar da graça em edificações, áreas verdes, cruzamentos viários, panorâmicas ou rastros. “A gente observa e descobre que uma chave de trilho tem um atalho que leva a uma fábrica”, comenta a antropóloga Aline Iubel, sobre as surpresas de encruzilhadas do Cajuru e do Capanema, atalhos para histórias inimaginadas para a maioria.

Em paralelo às informações específicas, Maria, Gabriel, Aline e os demais já podem arriscar diagnósticos. “O que me interessou foram as áreas verdes ao longo do trilho. Virou uma reserva”, comenta Maria, sobre um aspecto que tende a ser a maior contribuição do projeto “Pelos Trilhos”: além de quantificar o patrimônio ferroviário e de documentá-lo, a pesquisa mostra, nas entrelinhas, como a ferrovia marcou a dinâmica da cidade e a salvou de si mesma. Ignorar essa informação é como chutar a capital na espinha.

O saldo dessas descobertas não poderia ser mais positivo. À revelia dos investidores imobiliários, empresários e gestores públicos – que menosprezam a memória do mundo do trabalho – a produção do grupo aponta a relação afetiva dos curitibanos com a linha do trem. A Rede sumiu, mas não a sua importância na ordenação da cidade. A relação, claro, é de amor e ódio. O transporte de carga fez com que linha virasse um corpo estranho, sem interferência positiva na rotina dos curitibanos. “Hoje, a linha não está integrando a malha urbana. É poética, mas também defasada”, observa Dayana. “Perdeu-se o vínculo”, acrescenta o historiador Fabiano.

O fato é que sem resolver essa equação entre afeto e utilidade, vai ser muito difícil que alguma política de preservação salve a paisagem ferroviária. Ela se mantém em pé porque é usada – ainda que por uns poucos. Mas tende a beijar a lona se não for integrada à rotina da capital. O assunto apaixona e divide o sexteto de pesquisadores. Deve contaminar outros jovens como eles. A paisagem ferroviária de Curitiba, enfim, se encontrou com o futuro.

matéria : gazeta do povo

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