quinta-feira, 7 de abril de 2011

A cidade que ruiu com sua indústria








PERSPECTIVA SOMBRIA
A torre da GM, vista entre uma casa abandonada e outra habitada na região central de Detroit, no fim da tarde de 16 de janeiroSão milhares de casas e apartamentos abandonados, alguns deles destruídos pelas fogueiras que os sem-teto acendem para lutar contra o frio de 20 graus negativos das madrugadas. Parte de Detroit, no estado de Michigan, é um cenário de documentário sobre o fim do mundo. Despossuídos vagam pelas ruas como autômatos, com suas juntas enrijecidas pelo vento gelado.

Um símbolo da decadência é a fábrica da Packard. São 325 mil metros quadrados de ruínas, das quais a cidade não consegue se livrar. Abandonada há décadas, nem proprietário tem mais. Reza a lenda que o dono cumpre pena por tráfico de drogas na Califórnia. O lugar virou mórbida atração turística e ponto de encontro dos grafiteiros da cidade.

Em 60 anos, os habitantes de Detroit decresceram de 1,8 milhão de pessoas para os atuais 750 mil. E continuam diminuindo. Em 1967, uma histórica rebelião da população afro-americana sacudiu a cidade. Dada a inabilidade nas negociações do pós-revolta, a população branca começou o êxodo para os subúrbios ou para outras partes do país. Sobre esse caldo de cultura, acrescentou-se o desemprego galopante nas montadoras da cidade – GM, Ford e Chrysler. Postos de trabalho foram eliminados em massa. Primeiro, pela automação. Depois, pela invasão dos automóveis japoneses. E, mais recentemente, por uma sequência atordoante de eventos nefastos: do 11 de setembro aos estouros de bolhas especulativas em Wall Street.

O golpe final se deu com a crise financeira que começou no mercado imobiliário em 2007 e transformou-se, a partir do ano seguinte, na maior recessão dos últimos 60 anos. No pior momento da crise, quase 3 milhões de carros deixaram de ser fabricados nos Estados Unidos – na comparação com os números de 2007. A produção encolheu para o nível mais baixo em 20 anos. GM e Chrysler foram mantidas vivas por empréstimos bilionários do Tesouro americano. Que, em troca, tornou-se sócio das companhias. Dezenas de fábricas e centenas de concessionárias fecharam suas portas. Dezenas de milhares de trabalhadores perderam seus empregos.

Como não poderia deixar de ser, a cidade ruiu com suas indústrias. Detroit hoje é considerada o pior local para se viver nos quase 9 milhões de quilômetros quadrados dos Estados Unidos. Tem algumas das taxas de violência mais altas do país – seis vezes mais assassinatos do que em Nova York; o dobro dos roubos por mil habitantes. No mês passado, um estuprador serial apavorava a cidade. Cerca de 50 mil famílias foram despejadas de suas casas por não conseguirem pagar suas hipotecas.

Contudo, o que parece ser o fim da estrada para a indústria automobilística americana pode ser um marco na história da mobilidade. Com surpreendente velocidade, os fabricantes de automóveis dos Estados Unidos aplicam um cavalo de pau em suas linhas de produtos e (como se verá nas próximas páginas) trocam os exuberantes e ineficientes utilitários esportivos, que dominavam 61% do mercado americano em 2005, por automóveis compactos e carros movidos a energias alternativas. Pelo menos num primeiro momento, as vendas reagiram e a esperança ressurgiu.

Está em curso uma renovação do centro da cidade. E já há muito o que ver nessa área restrita. Poderia estar melhor, mas o processo sofreu um revés no ano passado, com a condenação do prefeito Kwame Kilpatrick a cinco anos de prisão por obstrução da Justiça. Um hotel de luxo inaugurado em 1924, que durante anos esteve abandonado, foi recuperado e reinaugurado em 2005. É o Book Cadillac – assim mesmo, com um dos sobrenomes mais tradicionais de Detroit, fundada há 300 anos por um Cadillac –, que funciona agora sob o nome Westin Book Cadillac, com apartamentos de moradia nos andares mais altos e hotel nos de baixo. “Servimos a clientela corporativa que visita a cidade de segunda a sexta-feira. Nos fins de semana, a atividade é de festas e recepções”, diz Bradley McCallum, concierge-chefe do hotel e fotógrafo de arquitetura amador.

Várias instituições e pessoas altruístas dedicam-se a amenizar o sofrimento causado pelo frio e pela fome. Uma dessas pessoas é Jeff DeBruyn, advogado de 41 anos, que dirige um programa de alimentação para os necessitados de uma igreja pentecostal. Baseado na sua experiência na “sopa dos pobres”, DeBruyn fundou a Face the Station, uma instituição beneficente no bairro de Corktown, adjacente ao centro da cidade. Com doações, ele comprou duas casas em ruínas para a construção de um centro comunitário. “Daremos abrigo e informação aos necessitados. Essas pessoas não têm dinheiro para comprar jornais nem computadores, e sem informação, não há democracia”, afirma DeBruyn.

O salão do automóvel de Detroit deste ano atraiu maior público do que nos anos anteriores. No dia 16 de janeiro, um domingo, 99 mil visitantes viram os lançamentos e receberam a notícia de que o Volt, da General Motors, é o carro do ano. Aí está uma das alavancas da recuperação da cidade – o carro elétrico. “Produziremos os modelos dos sonhos dos consumidores do futuro: aqueles que agridem menos o planeta e têm alta tecnologia”, disse a Época NEGÓCIOS Bill Ford, bisneto de Henry Ford e atual presidente do conselho de administração da montadora. Do êxito nesta tarefa, compartilhada com as vizinhas rivais General Motors e Chrysler, depende o futuro de Detroit.





O FORASTEIRO VENCE

Como o CEO mais bem pago da indústria automotiva recuperou a Ford, levando a globalização e a economia de escala às últimas consequências

Se William Clay Ford, bisneto do fundador Henry Ford, vier a entrar para a história, não será por uma criação genial. Ele será lembrado como o homem que passou o bastão de comando da Ford Motors para a pessoa certa na hora certa. CEO da montadora por cinco anos, até 2006, Bill Ford, como é conhecido, teve de enfrentar uma sucessão de crises até se convencer a entregar o timão para um executivo profissional de ponta. Sua primeira opção era Carlos Ghosn, já consagrado àquela altura por ter tirado a Nissan do buraco. Com a negativa de Ghosn, Ford passou ao segundo nome da lista: Alan Mulally, um estranho no ninho das montadoras. Com 37 anos de carreira na Boeing, Mulally também já marcara época no setor aeronáutico, graças à bem-sucedida reestruturação que promovera na fabricante de aviões de Seattle.

Àquela altura, a sensação era de que ninguém tinha um Ford na garagem. Nem Mulally, então dono de um Lexus. Mas grandes riscos exigem grandes retornos, e sua contratação acabou sendo selada mediante um salário anual de US$ 18,5 milhões, remuneração que fez dele o executivo mais bem pago da indústria automobilística. Mulally desembarcou em Detroit disposto a usar a tesoura. De pronto, 14 linhas de montagem foram fechadas e 30 mil funcionários, demitidos – o equivalente a 47% da força de trabalho da Ford na América do Norte.

Corte para o presente e é fácil perceber que a segunda escolha de Ford e os primeiros movimentos de Mulally foram certeiros. Única das três montadoras de Detroit a recusar dinheiro do governo americano, a Ford é a que melhor está saindo da crise. A expectativa é de um ganho de US$ 2,3 bilhões no ano passado. Com dinheiro em caixa, a ordem é acelerar o programa de expansão internacional. “Nosso objetivo é não apenas fazer com que a Ford sobreviva à crise econômica, mas torná-la forte nos quatro cantos do planeta”, disse Bill Ford a Época NEGÓCIOS, no Salão de Detroit.

MULALLY DESMONTOU O PORTFÓLIO DE MARCAS DE LUXO
DA FORD E APOSTOU EM MODELOS “VERDES”

No centro da estratégia de Mulally, está a meta de produzir em escala global os carros que consumidores do mundo inteiro gostariam de conduzir. Modelos de sucesso na Europa, como Focus e Fiesta, entram no cardápio de produtos disponíveis para americanos, chineses, indianos e brasileiros. “Nossa empresa terá cinco centros de engenharia espalhados pelo planeta, para desenvolver carros mundiais”, diz Mark Fields, vice-presidente da região Américas, que compreende o mercado brasileiro. O Brasil tem dois candidatos à mundialização: o novo modelo do EcoSport e um caminhão pesado.

Mulally desmontou o portfólio de marcas de luxo do grupo. Jaguar, Land Rover, Aston Martin e Volvo foram vendidas uma a uma. Na própria Ford, o foco se volta para carros frugais e globais. A fábrica de Michigan, por exemplo, está sendo adaptada para trocar a enorme picape Expedition por veículos médios, como o novo Focus – que chega quase simultaneamente aos mercados americano e europeu ainda neste ano e, em 2012, à Ásia e ao Brasil. Quase 80% das peças serão as mesmas no mundo todo. Naturalmente, consegue-se assim uma formidável economia de escala.

Mulally determinou a criação de diferentes modelos “verdes” na chamada Plataforma C. Nela, há espaço para carros a bateria, como o Fusion Hybrid, recém-lançado no Brasil, híbridos recarregáveis na tomada e veículos 100% elétricos. Para alcançar o Nissan Leaf, líder do segmento, a Ford aposta em um sistema de recarga mais rápido, capaz de abastecer um carro em três horas e meia, metade do tempo necessário para devolver ao Leaf sua autonomia de 165 quilômetros. Bill Ford anunciou a criação de 7 mil empregos nos Estados Unidos. Parece pouco para uma empresa que opera com duas vezes e meia menos funcionários que há uma década. Mas é uma prova de que Mulally era mesmo o homem certo para a mais difícil das horas.
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LUA DE MEL À ITALIANA

Devastada pela crise de 2009, a Chrysler ensaia a volta ao azul sob a liderança de Sergio Marchionne, CEO da Fiat. Mas é cedo para cantar vitória

Quinze quilos mais magro depois de uma dieta implacável, Sergio Marchionne foi recebido com honras de salvador da pátria em Detroit, no início de janeiro. Dezoito meses depois de assumir o comando da Chrysler, o principal artífice da virada do grupo Fiat trabalha para concretizar um segundo grande feito em sua carreira: salvar as combalidas marcas da terceira maior montadora americana. No mais importante salão do automóvel dos Estados Unidos, Marchionne apresentou os primeiros exemplares da nova safra de modelos – três variantes do sedan Chrysler 300. “Este carro simboliza os novos tempos para nós”, disse ele, no estande da montadora.

Num momento em que enfrenta duras negociações com sindicatos italianos em torno de produtividade e investimentos, Marchionne vive uma lua de mel com os trabalhadores americanos. Depois da crise de 2008, as vendas da Chrysler caíram 36% e encolheram ao patamar de 1962. De suas dez linhas de montagem na América do Norte, oito foram fechadas, junto com 800 de seus concessionários. Mas o que mais se temia, a falência, não aconteceu. Em vez disso, a montadora está passando, fatia a fatia, para mãos italianas. Horas depois da abertura do Salão de Detroit, a Fiat arrematou mais 5% do capital da Chrysler por ter cumprido uma das condições pactuadas com o governo Obama: produzir motores de quatro cilindros mais eficientes que os beberrões V6 e V8 que durante anos equiparam as picapes Dodge Ram e os utilitários esportivos da Jeep. Nos próximos meses, começa a montagem de carros com tecnologia Fiat e sua exportação a partir dos Estados Unidos. Até lá, a participação dos italianos no capital da montadora deve passar dos atuais 25% para 35%.

“Avançamos muito nos últimos meses, principalmente na reorganização das nossas linhas de montagem e na forma como comercializamos nossos carros. Mas ainda há muito trabalho duro a fazer”, diz Ralph Gilles, projetista-chefe e segundo executivo da Chrysler. “Em vez de abandonar marcas, achamos melhor resolver a confusão em que o grupo tinha se metido.” Gilles não exagera ao analisar o caótico passado recente da montadora. O casamento com a alemã Daimler, no final dos anos 90, terminou em divórcio pouco amigável. A essa relação, seguiu-se outra, breve e tumultuada, com o fundo Cerberus, que a abandonou com pouco dinheiro em caixa e baixa renovação de produtos.

MESMO SEM LANÇAMENTOS, A CHRYSLER COLHE FRUTOS DA ASSOCIAÇÃO
COM A FIAT: AS VENDAS CRESCERAM 16%

Mesmo ainda não sendo páreo para as vizinhas de Detroit e menos ainda para japoneses e alemães, a Chrysler já colhe os frutos da parceria com a Fiat. Em 2010, suas vendas cresceram 16%. “Pelas nossas estimativas, 2011 será um ano de estabilização e transição até a chegada de produtos novos e desejáveis”, diz Marchionne. Segundo uma pesquisa da revista Consumer Reports, só 2% dos americanos considerariam comprar um carro Chrysler, e 3%, um Dodge. A Ford foi citada por 18% dos pesquisados, e a General Motors, por 13%. “Não há outra saída que não investir pesado em novos produtos”, diz Fred Diaz, presidente da divisão Dodge. “E, para isso, a ajuda da Fiat será outra vez fundamental.”

Ele se refere ao momento crucial da parceria, quando modelos da Chrysler baseados em plataformas da Fiat e da Alfa Romeo chegarão aos mercados da América do Norte. “Em dois anos, deveremos lançar 16 carros”, diz Olivier François, o executivo francês escolhido por Marchionne para comandar a reestruturação da Chrysler. O investimento, estimado em US$ 2,1 bilhões, persegue duas metas: crescimento de 45% nas vendas nos próximos 12 meses e 2 milhões de automóveis vendidos em 2012. Depois de flertar com o abismo, a ordem é agarrar oportunidades. “Para dar essa virada na Chrysler sem tirar os olhos da Fiat, Sergio [Marchionne] trabalha oito dias por semana”, diz Gilles. “Ele nos convenceu de que era possível sobreviver e seguir em frente.”
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A crise que quase liquidou GM, Ford e Chrysler transformou Detroit no pior lugar dos EUA para se viver. Mas não é o fim da estrada para a cidade do motor
de Detroit
MENOS MARCAS, MAIS VENDAS

Depois de fechar ou vender metade de suas divisões, a General Motors retoma o caminho do crescimento fortalecida pelo maior IPO da história

Foram quase dois anos encarando a derrota. Durante eles, a General Motors extinguiu duas de suas marcas, Pontiac e Saturn. E vendeu outras duas, Hummer e Saab. Fechou 14 linhas de montagem e centros de distribuição. De suas 6,2 mil concessionárias nos Estados Unidos e no Canadá, eliminou 1,2 mil. Mesmo com tudo isso, foi obrigada a tomar um empréstimo de US$ 50 bilhões do Tesouro americano para não ter, ela própria, que fechar suas portas. E, mesmo com tudo isso, está de volta ao jogo. Aproveitando o tropeço da Toyota – três recalls em sequência, envolvendo 5 milhões de carros defeituosos –, a GM recuperou a liderança em vendas nos Estados Unidos, com 19,1% do mercado. De quebra, faturou o prêmio de carro do ano no país, com seu primeiro automóvel híbrido, o Volt. E voltou ao azul, com um lucro líquido de US$ 2,1 bilhões no terceiro trimestre do ano passado.

As quatro marcas que sobreviveram à maior reestruturação de sua história (Buick, Cadillac, Chevrolet e GMC) venderam 2,2 milhões de unidades em 2010. Isto é 6% mais do que no ano anterior, quando havia mais modelos disponíveis e incentivos fiscais à compra de carros. Comparando só os resultados das marcas que ficaram no portfólio, o crescimento é impressionante: 21%. “São resultados consistentes e demonstram que estamos reagindo, dia após dia”, disse Dan Akerson, CEO da GM, a Época NEGÓCIOS.

A GENERAL MOTORS HOJE FATURA MAIS COM A VENDA DE BUICKS
NA CHINA DO QUE NOS ESTADOS UNIDOS

Com experiência no mercado financeiro, em empresas como Carlyle e American Express, Akerson liderou a reabertura de capital da GM, depois da estatização parcial. O resultado foi o maior IPO da história, alcançando US$ 23,1 bilhões. Desnecessário dizer que a empresa cujas ações os investidores compraram em novembro guarda poucas semelhanças com a que entrou em concordata um ano e meio antes. A prioridade, hoje, são carros eficientes, com baixo consumo de combustível. Como o Sonic, que puxa a fila de uma família nova de carros compactos com a assinatura Chevrolet. Como um símbolo dos novos tempos, a Buick apresentou no Salão de Detroit seu primeiro carro médio em duas décadas, o Verano, que compartilha uma mesma plataforma com o Cruze – outro automóvel que aponta uma tendência. Ele foi concebido no Centro de Design da Daewoo, marca coreana que pertence ao conglomerado, e desenvolvido globalmente.

Apesar do premiado Volt, a opção da GM por carros híbridos é alvo de questionamentos. Não seria o caso de partir de vez para uma solução 100% elétrica, como a do Nissan Leaf ou a do Focus elétrico, prestes a ser lançado nos Estados Unidos? Margaret Brooks, diretora de marketing da GM para o segmento de compactos, pensa que não. “Os que apostam nos puramente elétricos ainda não mediram os efeitos que uma autonomia de apenas 165 quilômetros poderá ter na hora do consumidor escolher seu próximo carro”, afirma ela. Já estão em fase de desenvolvimento uma minivan e um utilitário esportivo da família Volt, com autonomia de 80 quilômetros a bateria e 400 quilômetros a gasolina. “Essa tecnologia será estendida a outras marcas do grupo”, diz Akerson, cujo objetivo é produzir 45 mil carros híbridos por ano nos Estados Unidos. E internacionalizar a novidade. Ainda este ano, será lançado no Salão de Frankfurt, na Alemanha, o Ampera, versão europeia do Volt. Já há planos de lançamentos híbridos na China. Mas não no Brasil.

Mercados emergentes são assunto quente na GM. A companhia hoje fatura mais com as vendas de Buicks na China do que nos Estados Unidos. A operação brasileira, também em crescimento, compartilha o status de prioritária. Índia e Rússia não poderiam estar fora do radar. “Do crescimento da companhia nesses países e da nossa habilidade em fabricar carros mais eficientes e desejáveis depende a volta da General Motors à trilha do sucesso”, diz Akerson.
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Fonte: Época Negócios

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