sábado, 19 de fevereiro de 2011

Lula não vai pendurar as chuteiras e quer ser um novo Nelson Mandela


Nada de ajuste fiscal, juros altos ou cotoveladas na base aliada. Depois de 50 dias fora do governo, o que atormenta mesmo a vida do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é uma teimosa goteira dentro de seu apartamento de São Bernardo do Campo, no sudoeste da região metropolitana de São Paulo.

Sem avarias no relacionamento com a presidente Dilma Rousseff, Lula atribui as "fofocas" sobre atritos entre "criador" e "criatura" à tentativa da oposição de criar fatos.
"Eu não tenho uma vírgula de discordância com a Dilma e, quando tiver divergência, ela terá sempre razão", disse ele na sexta-feira, durante viagem de volta do Rio para São Paulo, no voo 1517 da Gol Linhas Aéreas Inteligentes.

Enquanto lia o livro "A Nova Toupeira", do sociólogo Emir Sader, que trata dos desafios da esquerda na América Latina, Lula reclamava com o assessor e ex-presidente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) Paulo Okamotto da falta de pedreiro para consertar a goteira de três anos e traçava planos para o Instituto Lula.
O ex-presidente quer criar uma página na internet e instalar um memorial de lutas sociais no centro da capital paulista, mais precisamente na Cracolândia. Tenta encontrar um imóvel com o auxílio do prefeito da capital, Gilberto Kassab (DEM), que pode migrar para o PSB. Disposto a não causar embaraços a Dilma, a quem chama de "essa menina", Lula faz de tudo para protegê-la.
Na quarta-feira (16), dia da votação do salário mínimo de R$ 545,00 na Câmara dos Deputados, o ex-presidente conversou com ela várias vezes por telefone, da capital fluminense, e transmitiu uma série de orientações. Na quinta-feira (17), ligou para cumprimentá-la pela vitória no primeiro teste parlamentar. "Foi justo o que foi aprovado. As centrais sindicais não podiam quebrar as regras. Acordos são para ser cumpridos porque, se você não age assim, perde o respeito", afirmou.
Quando é cercado por jornalistas, porém, Lula não parece nada à vontade ao falar sobre a administração federal. Embora admita dificuldades no processo de "desencarnação", por ter passado a faixa presidencial com 87% de popularidade, quer um tempo para "maturar" as ideias antes de dar declarações. A quarentena vai até a Quarta-Feira de Cinzas. "Eu combinei com a Dilma que, ou eu vou ajudar, ou vou ficar calado. Sempre fui assim. Quando deixei o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e quando saí da presidência do PT, não ficava dando palpite. Acho isso uma coisa abominável", insistiu.
A atuação do petista na seara política ocorre nos bastidores, longe dos holofotes. Na noite de quinta, ainda no Rio, o ex-presidente jantou com empresários que lhe pediram para traçar um panorama econômico, com perspectivas para os próximos anos. Antes, naquele mesmo dia, havia almoçado com a economista Maria da Conceição Tavares. Diante da queixa de Maria da Conceição de que não conseguia ser atendida por Dilma, passou a mão no telefone e ligou para o Palácio do Planalto.
"Fale aqui com ela agora", disse, entregando o aparelho para a economista. "Quem tem um padrinho desse não morre pagão", devolveu Maria da Conceição. Conhecida por críticas contumazes à ortodoxia econômica, ela marcou encontro com Dilma para os próximos dias, mas afirmou que não dará bordoadas no corte de R$ 50 bilhões do Orçamento. "Eu não sou maluca. Estou do jeito do Lula, numa 'nice'", brincou.
Viagens e conferências

Depois de participar do Fórum Social Mundial, no Senegal, Lula viajará segunda-feira (21) para a Guiné. Nos dois mandatos, o ex-presidente visitou 29 países da África. Agora, mesmo longe do poder, Lula tem programação típica de governante: a convite da Vale, lançará a pedra fundamental da Ferrovia Trans-Guiné, destinada ao transporte de passageiros e cargas leves.
Na prática, o homem mais importante do País nos últimos oito anos não conseguiu, até hoje, vestir o figurino de "ex" nem mudar a rotina. Por todo lugar onde anda, é tratado como popstar Ao ser assediado, nunca ouve cobranças. Ninguém menciona crises como o escândalo do mensalão, de 2005. Na ponte aérea Rio-São Paulo, por exemplo, Lula distribuiu autógrafos, posou para fotos com passageiros e foi até convidado para um churrasco pelo operador de abastecimento do avião.
Antes, parou para abraçar a cantora e compositora Dona Ivone Lara, que estava no voo.
"Parabéns pelo seu governo, pelo que o sr. fez pelo Brasil e vai continuar fazendo", elogiou o ator Camilo Bevilacqua, que se dirigiu até a poltrona 10 A, onde estava o ex-presidente, pouco antes da aterrissagem, às 11h45. "Eu já fiz tudo o que quero na vida. Não tenho mais projetos", disse Lula, que, a essa altura, foi interrompido por Okamotto.
"Como não tem mais projetos? Tem, sim, sr." O ex ainda não definiu o formato do instituto que ganhará o nome dele. Avalia a possibilidade de abrigar cursos de gestão pública e pôr à disposição de outros países experiências bem-sucedidas adotadas no Brasil. O Instituto Cidadania, organização não-governamental (ONG) que ele mantinha no Ipiranga, zona sul da capital, antes de chegar ao Poder Executivo, está agora em reforma para se transformar em uma espécie de "encubadora" da nova fundação.
Palacete

Embora o governador do Rio, Sérgio Cabral Filho (PMDB), tenha sugerido o Palacete Linneo de Paula Machado, em Botafogo, para ser a sede do Instituto Lula, o ex-presidente prefere ficar mesmo em São Paulo. "Vou voltar para o lugar de onde saí para o Planalto", declarou à reportagem. Mesmo sem bater o martelo sobre as diretrizes da nova entidade, Lula tem uma certeza: não quer nada parecido com o Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC), comandado pelo antecessor no Executivo
"É muito personalista", resumiu. "Eu também não quero ficar só fazendo conferências." Além dos 40 títulos de doutor honoris causa que tem a receber no Brasil e no exterior, o ex-presidente acertou palestras em Nova York, Madri e Londres, a partir de março. O valor é mantido em sigilo, mas, em geral, cobra-se na faixa de R$ 200 mil por apresentação internacional.
Quem conversou com Lula nos últimos dias, saiu com a impressão de que ele gostaria de ser um "embaixador" da luta pela erradicação da miséria no mundo. É por isso que a África está na mira. "Lula é o Nelson Mandela tupiniquim", comparou o pesquisador e economista Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Neri revelou que o ex-presidente não quer pendurar as chuteiras tão cedo na política.
Quando o pesquisador e economista apresentou a ele, na quarta-feira, pesquisas indicando que a população em idade ativa começará a cair a partir de 2024, observou uma interrogação na fisionomia dele. "Marcelo, você acha que depois de 65 anos as pessoas param de trabalhar?", perguntou. Ele mesmo respondeu: "Nem pensar. Nada de pijama." As chuteiras também não serão aposentadas no futebol. "Acertamos de jogar uma pelada no Rio", garantiu o cantor e compositor Chico Buarque.
Por enquanto, o "gabinete" de Lula funciona na suíte de um elegante hotel, em São Paulo. No seu apartamento, em São Bernardo, ele diz não conseguir achar um terno, de tanta caixa empilhada. O ex-presidente que lava louça ainda precisa voltar a fazer coisas da rotina de um cidadão comum, como ir ao médico oculista. "Estou com esses óculos desde 2002 e não enxergo mais nada", reclamou, com dificuldade para ler o livro de Sader. Antes de fechar as páginas, fez uma confidência: "Ele acha que eu enganei a direita e a esquerda."


Fonte: Paraná Online

Nenhum comentário:

Postar um comentário